sexta-feira, 4 de julho de 2008

FALSAS RECORDAÇÕES FELIZES

O passado de Gonçalo começou a desmoronar-se à mesa de um bar, no Bairro Alto, várias cervejas depois da meia-noite, quando ao riso sucedeu o cansaço. Tinham discutido o namoro de Penélope Cruz com Tom Cruise. A conferencia sobre racismo em Durban. As vantagens e os perigos do casamento. Então, em meio ao fumo amargo que enchia a sala, alguém lançou um novo tema – o Primeiro Beijo.
«Nunca me esquecerei», disse ele. «Foi em mil novecentos e setenta e oito, no dia em que fiz dezasseis anos. Tinha ido a um concerto do Chico Buarque com alguns colegas de liceu. O Chico começou a cantar o Eu te Amo, que aliás não se presta muito para uma declaração de amor, é antes uma canção de despedida. Lembram-se?...»
Cantarolou com voz rouca:
«Se nós, nas travessuras das noites eternas / já confundimos tanto as nossas pernas / diz com que pernas eu devo seguir. / Se entornaste a nossa sorte pelo chão, / se na bagunçada do teu coração / meu sangue errou de veia e se perdeu…»
Calou-se um momento, o olhar absorto, enquanto enrolava nostálgico uma madeixa do cabelo. Já não lhe restava muito cabelo de forma que aquele tique era um pouco deprimente. Suspirou.
«E então ela encostou a cabeça no meu ombro e eu beijei-a.»
«É bonito», reconheceu um dos amigos, critico de música, um tipo que se gabava de saber quase tudo sobre tudo, ou, em alternativa, tudo sobre quase tudo – e realmente sabia. A erudição dele incomodava os outros. «Seria ainda mais bonito se fosse verdade. Isso não pode ter acontecido em mil novecentos e setenta e oito. O Chico Buarque só criou essa canção, em parceria com o Tom Jobim, dois anos mais tarde.»
Gonçalo olhou-o perturbado:
«Disparate! Tenho a certeza que o Chico cantou essa música na noite em que fiz dezasseis anos, portanto em mil novecentos e setenta e oito. Foi nessa noite que comecei a namorar com a Marisa. Infelizmente nunca mais soube dela. Vocês lembram-se da Marisa, não se lembram?»
Não, ninguém se lembrava da Marisa. A Gonçalo, todavia, bastava fechar os olhos para voltar a vê-la. Era uma rapariga alta e flexível, com grandes olhos negros, melancólicos, e um alheamento pelas coisas do mundo que a fazia parecer imaterial. Apetecia ao mesmo tempo protege-la e ultrajá-la. Confrontados com a descrição de Gonçalo todos lamentaram não ter conhecido Marisa. Na mesa ninguém se lembrava dela. Pior: nem sequer se lembravam dele por essa altura.
«Só te conheci em mil novecentos e noventa», precisou o crítico de música. «Num concerto da Cesária Évora.»
Aquilo era demais. Gonçalo levantou-se indignado:
«Nunca estive num concerto da Cesária. Nunca!»
Ninguém disse nada. Toda a gente sabia que o critico de música jamais se enganava nos factos. Menos ainda nas datas. Gonçalo tirou uma nota do bolso e colocou-a sobre a mesa.
«Eu já vou…»
Nenhum dos amigos procurou detê-lo. Gonçalo saiu aflito para a noite mansa. Qual era a sua recordação mais antiga? Esforçou-se um pouco. Recordava-se de ter assistido pela televisão à ocupação de Goa pelas tropas indianas. Devia ter uns cinco anos, seis no máximo, ainda não andava na escola. Voltou ao bar e perguntou ao crítico de música:
«Olha lá, sabes dizer-me quando é que perdemos Goa?»
O outro nem pestanejou:
«A dezoito de Dezembro de mil novecentos e sessenta e um.»
Gonçalo respirou fundo. Nessa data ainda nem era nascido. Seria possível que todas as suas memórias fossem apócrifas? Voltou a sentar-se, tremulo, e pediu mais uma cerveja. Se não podia confiar nas próprias recordações não havia nada em que pudesse confiar. O crítico de música citou Buñuel:
«Uma vida sem memória não é uma vida.»
Depois percebeu que aquilo não tinha nada de animador e tentou emendar:
«O teu caso não me parece tão grave. Tens uma vida. É falsa, sim, mas afinal de contas é uma vida.»
«Mais valem falsas recordações felizes», acrescentou um outro, «do que lembranças autenticas e desgraçadas.»
Gonçalo estava inconsolável:
«Vocês acham que eu nunca beijei a Marisa?»
Ninguém respondeu. Talvez tivessem bebido demais. Talvez fosse demasiado tarde. Talvez achassem realmente que ele nunca beijara Marisa.


Conto de José Eduardo Agualusa publicado no livro “Catalogo de Sombras”.


Eu te Amo – Chico Buarque, Tom Jobim.

1 comentário:

MoonLight disse...

Belo conto...
refúgios da e na mente... recordações... passado...

Viver o momento. Aqui e agora.
Sem passado. Sem futuro. Só o momento!

Bjs de Luz*