quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O Mar em Casablanca

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“Vais morrer sozinho”, ela dissera.

Ele recordou essa tarde. Havia um café cheio de fumo e de ruído, ruas preparadas para o Inverno, carros vazios nos parques. E ela. Como era ela? Mal se recordava, fora há muito tempo e essas recordações são quase sempre ridículas, uma espécie de retrato fugidio que passa à nossa frente como uma ameaça e um apelo que vem não se sabe de onde. Como era ela? Tinha vestida uma saia de xadrez, gabardina, um gorro de lã – e haveria um rosto, certamente, mas o rosto era uma espécie de desperdício ao fim destes anos que tinham passado sem tê-la visto uma única vez. Não tinham nada para rever, nenhum filme para verem juntos, nenhum restaurante que fosse deles, nenhum passeio para se perderem. Nunca tiveram álbuns de fotografias, recordações de ferias, vida em comum. Ele fora avisado, ela avisara-o:

“Vais morrer sozinho.”

(…)

Mas o epicentro de todos os movimentos em redor da praça era o restaurante: vinha ali buscar uma comida que já se encontrava raramente nos restaurantes da cidade, cozidos elementares, estufados profundos em que as carnes se dissolviam lentamente para horror dos dietistas, aromas de gorduras liquefeitas, peixes fritos (marmotas, fanecas, pescadinhas, carapaus), vitela cozida com grelos, iscas de fígado, tripinhas enfarinhadas, caras de bacalhau com arroz de feijão encarnado, arroz no forno de lenha, petingas fritas, pernil cozido com batatas, dobrada com feijão, a comida burguesa do Porto que tinha alimentado gerações de pequenos comerciantes e de funcionários competentes que respeitavam escrupulosamente a pausa para almoço e guardavam o vinho de uma refeição para outra, homens maduros e quase sempre solitários, raramente com família, armazenando qualidades essenciais de colesterol e de bem-estar, desconfiando da modernidade, das inovações culinárias e de comensais ruidosos.

(…)

O amor que não se esquece logo, provavelmente nunca se esquece. Perdura como uma traição – e ele conhecia o significado da palavra.

(…)

Ele bebia o seu cálice de Blue Curaçao, como fazia sempre depois de jantar. Jaime Ramos não bebia. Cozinhara pela primeira vez desde há muito tempo, por capricho, aproveitando as últimas sardinhas de fora da temporada, compradas num supermercado. Retirou-lhes as vísceras e, com a ponta da faca, retirou-lhes a pele até formar doze filetes que estendeu numa tábua de madeira, enquanto Ramiro, sentado num banco da cozinha, bebia cerveja e observava como o amigo mantinha a precisão dos seus gestos manejando a faca. Cortando a cebola em fatias finas, picando dois dentes de alho, escaldando alguns tomates maduros que retirara do congelador – para lhes retirar a pele e cortá-los em pedaços regulares, esmagando alguns com um garfo. Num tacho, deixou que a cebola em rodelas cozinhasse no azeite; não uma fritura rápida mas a suave alquimia de uma cozedura lenta, de baixa temperatura. Juntou então as sardinhas e subiu o fogo. Agora sim, fritar, de modo a que as sardinhas perdessem a sua película fresca, gelatinosa, muito rapidamente, inundando a cebolada do seu aroma. Esse era o segredo, explicou; se as fritasse, ficaria o cheiro a invadir a cozinha, toda a casa, mas a cama de cebola semicrua suavizou o cheiro. Depois de recolher os doze filetes regou-os com sumo de limão. A cebolada tinha escurecido, dourada no azeite e acrescentada de pequenos fragmentos do mais popular dos peixes; juntou-lhe então o tomate, o louro, o alho picado, um copo de vinho branco, três copos de água, e deixou que fervesse. De um frasco tirou pimentos assados a que subtraiu a pele fina, uma operação fácil. Quando o caldo tinha mais de um quarto de hora de fervura, juntou sal, o arroz e os pimentos e deixou cozinhar por dez minutos, até que os grãos de carolino, soltos e suculentos, reclamaram as sardinhas. Entregou-lhas, sacrificando a doçura do peixe à doçura ainda maior do caldo, ligeiramente espesso (graças ao tomate e à cebola, entretanto desfeita, transformada numa pasta flutuante e gelatinosa), e tapou o tacho por mais cinco minutos.

Ao abrir, o perfume espalhou-se pela cozinha e Jaime Ramos, que já tinha aberto uma garrafa de vinho, chamou Rosa pelo telefone – ela desceria os dois andares, carregando a sobremesa, e juntar-se-ia a um jantar para assinalar a saída de Jaime Ramos do hospital.
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Retirado do livro O Mar em Casablanca, de Francisco José Viegas.

1 comentário:

Alexia M disse...

então o Jaime Ramos vai parar ao hospital... Ainda não tinha chegado a essa parte do livro!