domingo, 21 de dezembro de 2008

Estorvo

Acordo sem saber se dormi pouco ou de mais. É um meio de tarde, mas não sei de que dia. Pulo a janela e saio pela varanda, do lado oposto à cozinha. Não quero cruzar com o velho nem com ninguém. Não há ninguém na colheita. Vou margeando o bananal por uma trilha que eu conheço, e que pega o riacho lá no alto. É uma trilha onde meu pai andava sempre, mas que todo mundo evita porque dá muita cobra. Naquele ponto do riacho há uma pedra grande repartindo as aguas, pedra que chamam de itaipava, e quando não está cheia fica fácil atravessar por ali. Depois é subir a encosta pelas sombras e chegar à cancela sem recorrer à escadinha. Disposto a pular a cerca, acelero e tomo impulso; quando a alcanço, está aberta. O horizonte está livre e posso muito bem sair do sítio, mas a vontade que me vem agora é de voltar para a cama. Recuo devagar pela estradinha, paro na casa de hóspedes, e tudo está deserto. Na oficina, os mesmos carros, motos, motores, chassis, mais o furgão zero-quilómetros pintado de azul-piscina. Atrás do galpão, a caravana de trailers e a vaca malhada. Dentro do trailer maior um telefone toca, toca, toca e ninguém atende.
Retirado do livro Estorvo de Chico Buarque, lido em 2002.

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